quinta-feira, 9 de junho de 2011


NA GIRA DE CRISTO OU NA GLÓRIA DE EXU?

Uma abordagem epistemológica do sincretismo religioso Afro-Cristão na capoeira.

“Santa Barbara do relampuê ou Santa Barbara do relampuá?...”

“Maior é Deus, pequeno sou eu”, disse o magnifico Mestre Pastinha.

Salve, salve, camaradas, amigos meus! Ou talvez fosse melhor dizer: Axé! Aleluia! Oh Glória, Salve Deus! Paz do Senhor! Sarava meu Pai ou ainda a Paz de Cristo Rei? Como se dará, nesta intitulada pós-modernidade as saudações materializadas nas rodas de capoeira? Como se apresentará os conflitos de âmbito religioso no contraditório lócus figurado pela capoeira?

A capoeira tem tido um papel de inconteste importância e singularidade no mundo contemporâneo. Apresentar-se como uma manifestação cultural de beleza cabal. Presente em mais de 150 países e, reconhecidamente, uma das maiores divulgadoras da Língua Portuguesa. Esta é um dos argumentos que nos remetem a sapiência popular que afirma "o que o mar leva o mar devolve".

Na travessia do Atlântico - sec. XVI -, um povo inteiro foi, forçadamente, levado a uma grande diáspora. Na chegada aos destinos que lhe foram impostos, saíram dos porões dos tumbeiros, espremidos, amargurados, de viagens que pareciam não ter fim; milhões de homens, mulheres e crianças, suportando intempéries como calor, fome, sujeiras, doenças, ratos, antropofagia, preconceitos, humilhações e a morte. Muitos eram jogados pelo meio do caminho no oceano atlântico.

As etnias negras lutaram muito e a Capoeira é, por excelência, expressão de luta em prol de uma liberdade nascedoura de suores, sangue e demais expressões das matrizes dos povos africanos nas senzalas, nas matas e quilombos.

Nesta grande diáspora, os africanos são retirados da sua terra mãe e deportados para novas terras com novos costumes, crenças, simbologias, novos nomes, novo ritualismo religioso e demais novidades impostas pelos poderes instituídos como a religião oficial por exemplo. Destarte, vemos um amálgama da religiosidade africana, mas com significativas tensões com a religião oficial figurada pela liturgia católica romana. Deparamo-nos então, com a religião, costumes, danças rituais e o misticismo africano articulando-se ‘confusamente’ com a religião cristã. Começava historicamente o sincretismo afro-católico no Brasil. Tudo isto concorrendo para plasmar esse caldeirão de religiosidade popular existente até hoje.

O universo das religiões afro-brasileiras que hoje deparamos por estas terras é de uma diversidade riquíssima, visto que expressam diferentes grupos étnicos que originam uma constelação complexa de denominações religiosas: candomblé, nagô, tambor de mina, pajelanças, pretos velhos, umbanda, kibanda, espiritismo afro e outras.

Na trajetória de manifestação da capoeira não seria diferente. Ela é uma arte-luta, que traz em si ampla simbologia, fazem referência a um ritualismo místico e sincrético influenciado pelos processos históricos dos seus primeiros líderes guerreiros, guardiões destas manifestações. Muitos mestres de outrora trouxeram dos seus ilês, terreiros, casa de santo, suas religiosidade, suas crenças, sua fé, sua espiritualidade, pois muitos eram líderes espirituais (babalaôs, pegigans, axoguns, alabês, ogans e outros). Porém, suas práticas e liturgias religiosas se davam sempre em seus ilès (casa religiosa) e nunca na roda de capoeira. Prezavam por tal partição, tendo em vista o respeito pelas particularidades de ambas atividades humanas.

Aludindo a este contexto dos antigos mestres e a deferência que eles mantiveram por sua religiosidade e sua arte – comportamento que denotava o conhecimento e consideração por estas manifestações – é que se diz que a capoeira não pode ser passada, ensinada e experimentada com uma figuração religiosa, dogmática, com comportamentos de alumbramento e louvor, longe disso. Nem deve ser incentivada nela a busca por certas e duvidosas epifanias.

Esta arte-cultural genuinamente afro-brasileira, é para a vida, é terapia, esporte, luta, lazer e outras significações que almejem ao bem estar de todo indivíduo que se proponha a praticá-la.

Atualmente o mundo sofre uma manifestação de muitas seitas religiosas e nesta ambiência não são poucos os que vêm a criar modelos, formas e paradigmas no intento de dar respostas às suas ânsias, dúvidas, vazios e conflitos pessoais e/ou coletivos. Necessário se faz ‘não confundir alhos com bugalhos’ e como bem diz um mestre de capoeira ‘roupa de homem não dá em menino’. Embora o que não pode acontecer é deixar-se a arte-luta da capoeira a deriva, sem rumo, levada por alguns ‘mestres’ ou religiões a procura de uma tábua de salvação.

Os tambores da capoeira tocam e azuelam por nossas ancestralidades; os berimbaus tocam para os nossos lamentos, histórias e alegrias da vida; ambos instrumentos culturais não são para louvar, evangelizar, cultuar espíritos, ou mesmo divinizar mestres nas rodas de capoeira. Estas rodas não precisam de exegeses bíblicas, hermenêuticas e escatologias ou mesmo uma teologia do medo. Vamos afastar este cálice.
A capoeira é cultura popular, manifestação de um povo em ânsia de liberdade. O Mestre Manoel dos Reis Machado (Bimba), foi o primeiro a ter a preocupação de separar o profano do sagrado nas rodas. O mesmo salientou que não podemos misturar e confundir. A religião é uma coisa séria e a capoeira é uma manifestação cultural de todo um povo; ambas têm quer ser respeitadas em seus respectivos ambientes. Os mestres de capoeira têm que observar que o profano não deve se misturar com o sagrado. A que haver cuidado diante de uma possível antromorfização, estados de êxtase e cultos religiosos na roda de capoeira. Não é admirável “mestres” de capoeira ou líderes dessa arte querer ‘cilícios’ em seus alunos, terços no pescoço ou farinha para Exu antes de uma roda no domingo no parque, na praça ou na academia?

A capoeira é livre.
O Batismo do espírito santo, louvor a Jesus de Nazaré ou ritual aos Orixás tem que ser respeitados e tem seus devidos lugares para isso (templos, terreiros e casas de culto, igrejas). Devemos fomentar, cultivar, preservar, respeitar a tradição e os fundamentos da capoeira e suas linguagens corporais e simbólicas. Manifestações religiosas de vários tipos, dentro da roda, podem apresentar-se como algo perigoso, grosseiro e complexo, para a geração de hoje e futura. Quando este amálgama - liturgias, magias, louvores, místicas, cultos, delírios e influências espirituais ou psíquicas - se apresenta como verdade absoluta dentro da roda de capoeira, estamos diante de um problema coletivo e quem sai perdendo é a capoeira.

A arte-luta da capoeira não pode ficar presa a doutrinas ou neuroses obsessivas compulsivas de alguns líderes de capoeira e entidades grupais. Em suma, capoeira não é religião.

O mestre Bimba foi muito firme neste sentido, pois queria ver a capoeira no mundo e por isso ele diria: ‘irei tirar a capoeira de debaixo do pé do boi, da lama.
Mesmo tendo mestres contemporâneos jogando literalmente a capoeira na lama.

Ademais, considerando esta hierarquização doentia e fanática de alguns líderes de capoeira, é necessário um despertar deste mundo de ilusões. A capoeira não precisa de líderes religiosos para se manifestar, mas, nunca com antes, de mestres humildes; não precisa de gurus, mas sim de mestres horizontais e não verticais. A capoeira não precisa de ‘mestre dos magos’, com seus placebos, panacéias e verborragias, mas sim de mestres amigos e irmãos, educadores para e na vida.

Pois meus camaradinhas:

“Aquele que está no claro não sabe quem está no escuro”

“Pois quem é de verdade conhece quem é de mentira”


Capoeira boa se sustenta. Por isso mestre Bimba e mestre Pastinha permanecem até hoje.
(M.BEIJAFLOR)

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